Descolori minhas sobrancelhas, queria ser camaleoa, ou melhor, ave de rapina que aprisiona homens como se fossem roedores. Pus os metálicos no rosto e o cristalino das bijuterias no pescoço, estou pronta para a guerra. Hoje vou encontrar o Josias e quero sentir o desaguar da sua boca. Quero mostrar a quentura da minha carne feita de lava e salamandras. Quero bombamor - tic, tac, meu peito marcando a chegada da explosão e tudo se esquentando em mim - quero explodir. Seguro o meu celular vermelho e navego pelas telas, interfaces, publicidades, notificações, aplicações - oceano digital cheio de lixo que até começo a me sufocar - até encontrar o seu contato com o gingado de uma gata no cio. Um oi aveludado, aberto, é recebido com indiferença masculina. Quer me provocar com sua frieza? Nesse jogo eu não perco. Emulei desinteresse, mentimos. E entre frases quase sussurradas de tanto marasmo, interjeições que floresciam do ócio e interrogações apáticas, marcamos o local do encontro completamente blasé. Vaca neon, nome do bar, na mesa perto das heras trepadeiras e do aquário de peixinhos dourados. Nove em ponto para nos depararmos diante das madeiras empoeiradas e das batatas fritas murchas.
Chegada a hora pego um táxi amarelo como uma abelha. Quero mel, preciso de coisas mais doces em minha vida. Tudo era tão amargo: o trabalho que não me realizava, as amizades que não me preenchiam por inteiro, as conversas que acabavam pela metade, os pensamentos que zuniam em minha cabeça como uma infestação de moscas. Fumava apoiada na janela do automóvel enquanto o taxista ouvia na sua rádio baixos pulsantes e violinos dramáticos, uma discoteca perfeitamente cafona. Era o meu último cigarro, esqueci de parar para comprar outro maço e agora já não tinha mais tempo, por pouco não me atraso. Tic, tac, é preciso chegar na hora certa para que a explosão seja bem conseguida, sou uma kamikaze, vivo morta, mas o desejo acende meu pavio e queima minha pólvora. Desejo salva? Não sei. Poderia o Josias me salvar? Existe mesmo salvação? Estamos aqui para um dia conhecermos o sublime e tocarmos no fogo e tocarmos em Deus? O desejo nos aproxima ou nos afasta de Deus, não sei, a distância nos condena, Ele está longe e fala em outra língua.
Um dia fui convidada a um casamento e enquanto todos estavam comemorando, um pensamento me veio como uma granada, e se eu colocasse a minha mão no fogo? Qual é a sensação de se queimar, de sentir a sua carne derretendo enquanto a vida continua e o mundo gira como um pião de madeira. E o mundo continua ao meu redor, sem redenção ou destino, e a minha mão no fogo enquanto a lua e o sol sobem e descem se alternando enquanto a minha mão toca a luz e é queimada. Como é sentir a sua mão sendo queimada? O Josias é a chama que queima as minhas patas, as minhas garras, ou ele é também o rosto que olha a vela queimando e deseja queimar a mão? Alguém já queimou a mão e sentiu o calor de Deus? Deus é uma chama que não queima? Ou Deus é um derreter que não deixa sobras? Ou existo eu ou existe Deus? Sim, sim, as taças tilintam, o mundo prossegue e a minha mão deveria estar no fogo, ou em Josias que é também outra forma do fogo que me esquenta e me atiça. O casamento, a união, convergências, harmonias, estamos todos nós, convidados e noivos, pulando fogueiras no São João, estamos todos queimando hereges e fumando cigarros que inevitavelmente causam câncer de pulmão, estamos todos ateando fogo às florestas, juntos, com as taças tilintando, juntos com as bocas cheias de docinhos e o hálito de champanhe, juntos vendo as fotos antigas, juntos queimando as mãos, juntos na palma da mão invicta de Deus - sempre na Sua presença e sempre buscando pelo o que se apresenta como ausência. Minha ausência é a voz de Josias quando ele não me responde e eu me vejo entediada tendo que pensar em Deus e em velas, abandonada como um embrulho de presente rasgado.
Desci do carro depois de pagar o motorista, trinta reais, e, como se carregada pelas mariposas da noite, caminhei até a mesa do encontro. Todo passo meu excitava os vermes que rastejavam pela terra coberta de asfalto e concreto. Os vermes profetizavam o meu prazer. A terra quer se libertar do betume, os seres já não aguentam mais a ordem, explodir, rachar as ruas, encontrar a chama que queima livre e sem regras. Sentei, endireitei a postura. Pedi um Apple Martini, observei os peixes que flutuavam pela água do aquário com suas escamas reluzentes e seus olhos esbugalhados de brinquedo. Uma luz verde neon colidia com os azuis, vermelhos e roxos que saiam da jukebox. A dona do bar, vestida com tecidos colantes que expunham a sua celulite, com seus cabelos negros e picotados, com seu colar de bolas vermelhas, vai até a máquina e tecla 71. Rita Lee começa a tocar, venha me beijar, meu doce vampiro, e eu no meio transformava-me em arco-íris. Teci a minha teia de sedução enquanto as primeiras gotas de chuva começaram a cair, esperando pela minha presa, minha mosca, minha vítima de bombardeio. Sobreviveria?
Pedi outro drink. Ele estava atrasado. As gotinhas que caíam antes tímidas, eram agora torrenciais. Eu não tinha sombrinha, mas também poderia parar de chover quando eu fosse voltar para casa, isso se eu fosse voltar para minha casa ainda hoje. Queria me perder dentre os lençóis de Josias, aqueles lençóis brancos e sem cheiro. Quanto mais bebia, mais lembrava da vagueza de sua vida, do vazio de seus minutos, lacunas e mais lacunas de um templo sem teto erguido ao nada soberano. Escutei a conversa da mesa ao lado. Dois homens. Um mais velho, provavelmente quarentão, e outro mais novo, entre vinte e trinta. Robustos, barbados, graves vozes. Falavam soturnos entre goles do que parecia ser cerveja.
Não podemos continuar escondendo, Eduardo.
É verdade, a verdade se enxerga pelas brechas, a elipse revela o todo com apenas uma exclusão. O silêncio diz muito.
Mas o que a gente vai fazer, cara? O que você tá propondo, Fabrício? Assumir pra minha mulher que eu tô apaixonado pelo meu chefe? É isso?
Ela vai entender? Importa mesmo que ela entenda? Quem culparia o Eduardo por querer viver uma pequena explosão de vez em quando. Sim, eu entendo com muita dor. Por que é tão difícil amar? Ser preenchida? Você tem tudo, você recebe todo o amor e descobre na vida uma sedução sem fim, uma ciranda envolta a uma fogueira que nunca se apaga, mas logo depois se descobre seca, vazia, nas cinzas, nas ruínas de uma cidade esburacada. Se descobre uma Hiroshima, uma Nagasaki, uma cidade explodida, que anseia por arqueólogos que venham explorá-la, mas abandonada, cheia de fantasmas e só e é natural que queiram prosseguir e conhecer outras cidades que ainda possuam pessoas. Onde está o Josias, meu explorador, já se cansou de mim? Abandonou-me o meu homem da noite? Eu sou a esposa traída, eu sou a elipse, eu sou o tédio que o desejo deixa nascer. Eduardo e Fabrício se divertem em jogos de gato e rato brincando de esconder um amor, uma paixão, enquanto eu que espero na mesa ao lado do aquário em que peixinhos dourados esquecem de tudo, lembro nitidamente do meu primeiro beijo com Josias.
Sim e qual a outra solução que você propõe? Continuar vivendo na penumbra dos moteis, nas entrelinhas, nos horários de almoço? Isso não é vida, eu não aguento mais, porra.
Mas existe mesmo vida, existe algo além das sombras? Existe salvação em se expor ao sol e ter a sua verdade conhecida como o botão de uma rosa? Um amor proibido talvez seja divertido - com certeza ocuparia os meus pensamentos se o Josias fosse uma mulher delicada com ancas gordas e peitos cheirosos, gastaria o meu tempo agindo como se eu fosse uma outra pessoa, não sendo quem eu sou exatamente o tempo todo - voragem, por isso que me temem, por isso que me abandonam - quem quer se dizer sobrevivente de um encontro comigo? Quem quer aguentar mais de um ano vivendo sob a minha vigília? Explodo, explodo, grito, peço por mais e nunca recebo, implorar por amor é garantir a sua ausência, botar a mão no fogo é se queimar e afastar Deus, a face de Deus virada para a outra direção enojada com o cheiro de pele queimada.
Não sei cara, apenas não consigo mais te ver assim carcomido por dentro pelo nosso segredo, ansioso, fumando mais que o costume, mentindo e se doendo por ter que mentir, eu sei que você não foi feito pra isso. Você é delicado, eu gosto disso.
Fomos feitos para algo? Temos finalidade? Somos armas? Queria ser uma pistola porque aí eu poderia atirar e sentir todo o calor surgindo e depois sumindo - um orgasmo é uma bala, anotei no bloco de notas do meu celular. Será que ele vai demorar o suficiente pr’eu me tornar poetisa? Credo, acabar na punheta bonita do jeito como eu tô.
Não vamos resolver isso agora.
É.
Vamos?
Já reservou?
Sim, mesmo quarto de sempre.
Massa, é relaxar.
Fabrício e Eduardo levantaram e foram embora. Para onde? A esposa não sabia, mas eu sim. Eu que coruja escutei tudo e agora estou entediada porque não tenho ninguém para escutar enquanto Josias não chegava. O bar estava praticamente vazio. A chuva havia assegurado que hoje seria uma noite de poucos clientes, tirando eu, apenas dois velhos que jogavam cartas silenciosamente e um rapaz jovem, muito jovem, que lia um livro velho com cara de sebo.
Me levantei, fui ao banheiro e me olhei no espelho. Palhaça maquiada com lágrimas, patética por ainda ter esperanças de que a vida me surpreenderia e que alguém me amaria, sim, motivo de riso no carnaval. Uma hora de atraso já. Retoquei os vermelhos, os azulados e os sombreados, precisava estar bonita para estar menos patética ou o contrário, não havia decidido, talvez os outros que decidam se somos patéticos ou não, uma hora o garçom me diz. Retornei ao meu lugar e pedi ao garçom uma porção de batatas fritas.
Elas chegaram rapidamente, douradas, banhadas ao óleo. Faltava sal, então pedi. Recebi aqueles sachês de papel com cristaizinhos dentro e derramei até sentir que aquela batata seria o suficiente para me deixar hipertensa. Elas derretiam na boca, faziam croc e depois o óleo encharcava minha boca.
Me distraí olhando as plantas que me rodeavam, nenhuma era especialmente bonita. Eram ornamentais todas de plástico, cheias de polímeros como as minhas batatinhas salgadas. Devoro uma por uma enquanto olho para o celular sem notificações, sem ninguém falando comigo, sozinha, sim, sozinha na noite molhada comendo batatas e vendo plantas de plástico. Gosto da mentira, talvez por isso não tenha me ofendido a traição de Eduardo, sim, via uma beleza naquele jogar com as sombras, a verdade é difícil de encontrar e muitas vezes não vale a pena, por que então não continuar na luz, na chama que nunca queima, na ilusão? É fácil achá-la e por isso ela é perigosa, a mentira precisa ser bem arquitetada para perdurar, caso contrário se desfaz no ar com o primeiro raio solar do amanhecer.
Quase duas horas de atraso, me fartei, me resignei: sim, não vou explodir, não vou ser tocada e tocar, pelo contrário, vou voltar molhada para a casa, húmida como um pântano e vou deitar e fechar os olhos e dormir e sonhar com peixes de plástico, bombas que não explodem, plantas, peixes de vidro, batatas fritas e viados se penetrando em um motel sujo e barato em algum escuro da cidade.
Levantei, paguei a conta, o garçom sorriu com pena para mim
Não veio?
Não. Tá assim na cara?
A gente aprende a reconhecer.
A verdade me escapou, fui patética, não fui?
Ele cala, não discorda nem concorda, o que significa que não teve a ousadia de mentir e nem a coragem, ou crueldade, de falar a verdade. Fui muito patética. Dei uma gorjeta de cinco reais, tudo o que eu tinha tirando o dinheiro para a volta. Fui para a parada de ônibus mais próxima, encharcada pela tempestade. A parada estava vazia, o ônibus também. Tanto metal, tantas luzes, tanto silêncio e eu aqui sem Deus e sem Josias com as mãos intactas e o peito amuado. Olhei para as estrelas apoiada contra a janela e a lágrima que chorei meio bêbada e descontrolada refletiu a beleza da noite, os prédios tocavam nas estrelas no reflexo daquela lágrima enquanto as luzes amorfas dos postes e dos carros se misturavam e se transformavam em pontos abstratos, constelações, harmonias, convergências, o mundo é um caleidoscópio pronto pra ser costurado em uma coisa só - desejo, agulha divina.
O ônibus parou bruscamente e eu me sacudi toda como uma gelatina.
Porra, acidente a essa hora, não chego em casa nunca é caralho.
Eu fui pra perto do motorista indignado e olhei nos seus olhos na sua camisa de botões cinza e marcada de suor e sorri como quem diz calma, vai passar, estamos bem, estamos vivos e salvos da morte, ainda perdidos na vida. Olhei para a frente e vi. Um corpo prostrado no chão regando o asfalto frio da noite com sangue. Jorrando, explodindo, uma fonte, uma nascente. O rosto estava oculto pela silhueta de uma mulher que chorava e gritava no telefone.
Vem uma ambulância ou o IML? Frenesi na noite chuvosa, a mulher saiu da frente e entre gotas e jogos de luz de sirene e caralhos e putas que pariu e vai tomar no cu do motorista que só queria acabar o seu turno, meus olhos queimaram e eu vi.
O rosto de Josias. Sujo, arranhado, os olhos inertes como plantas de plástico ou superfícies de vidro, transparentes, inócuas. Plantas de vidro, talvez, partidas com folhas e caules que cortam e fazem o sangue escorrer como cascata ou aguaceiros torrenciais. Sem pernas, totalmente trituradas, o torso coberto por uma sacola de lixo que a tempestade havia carregado, Josias permanecia ali deitado como uma oferenda, um carneiro sacrificial enquanto a mulher continua chorando, gritando, Eduardo porra atende a ligação, puta que pariu homem inútil do caralho. Outros observam, poucos ajudam, o mundo é uma loteria, não demos sorte, meu amor. O carro branco todo manchado de sangue, marcado pelo crime e a mulher loira chorando, nervosa, gritando como uma ave de rapina.
Eduardo e Fabrício linguando um ao outro no escuro de velas do motel decidindo se a ereção homoerótica deve ou não ser revelada aos olhos alheios e eu aqui olhando para Josias, meu Josias, sem pernas, quase sem rosto, com os braços, antes fortes, murchos como um boneco de posto murcho. Exangue, cara pálida e chuva também nos meus olhos. O motorista pergunta tá tudo bem, moça? Não entende as minhas lágrimas, implodi, Deus, você está rindo não é? Pedi pelo fogo, pela explosão e recebi. Peço pra descer. O que foi, você conhece? Pergunta, não respondo, insisto. Ele cede, teme algo, desconfia de mim. Eu desço e a tempestade limpa a minha maquiagem. De cara limpa assumo, perdi. A luz do poste falha e Eduardo atende o telefone. Até que enfim, caralho, achei que não fosse atender nunca.